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Nossos gêiseres |
Eu não esqueço a cena. Era madrugada e um pequeno grupo seguia em direção a El Tatio, um dos pontos mais altos da região da quebrada de San Pedro de Atacama, no deserto chileno, onde ficam os famosos gêiseres. Havia chovido bastante na noite anterior e as estradas estavam muito ruins. O guia que levava o grupo era um representante legítimo dos Likan Antay, o povo atacamenho, originário do lugar. Seu nome: Getúlio. Homem de poucas palavras, com aquele silêncio pesado que precede tempestades, típico das gentes do Atacama que veem a cada dia seus espaços sendo tomados por empresários europeus.
Na Van seguia um grupo animado composto por brasileiros, chilenos e um espanhol. Basicamente colocávamos nossa vida nas mãos daquele homem, pois o caminho era absolutamente invisível, tamanha a espessura da neblina. Nada se via e só o que a gente sabia era que de um dos lados estreitos da estrada se abria um precipício imenso. Getúlio seguia impávido, conhecedor de que era daquelas milenárias veredas.
Então, houve um estrondo e o carro caiu num buraco, pendente para o lado do penhasco. Foi um momento de pânico geral. Logo estávamos todos na rua e Getúlio tentava retirar o carro da fenda onde tinha caído. Foi nessa hora que o espanhol surtou. Dizia ao indígena que ele era um irresponsável, que não havia condições de subir a montanha, que estava colocando em risco sua vida e tantas outras barbaridades que não vou reproduzir. Getúlio ouvia com sua impassível paciência enquanto, sozinho, lutava para tirar o carro da vala. Ficava explícito ali naquele monólogo do espanhol todo desprezo que ele tinha pelo saber e pela cultura de Getúlio, do povo originário. Sequer se prontificou em ajudar. Só gritando.
E foi tanta a loucura do espanhol que ele praticamente obrigou todo o mundo a voltar para a vila, fazendo ameaças e impedindo que o carro seguisse o caminho até os gêiseres. Como se a estrada ruim e o acidente fossem responsabilidade de uma “burrice” natural de Getúlio. A histeria do cara foi tanta que todos decidiram voltar para São Pedro e retornar a El Tatio só na madrugada seguinte, sem a presença do espanhol. Foi o que fizemos.
No dia seguinte partimos pela mesma estrada e com o mesmo motorista, vivendo a mesma aventura da neblina fechada. Lá em cima, maravilhada com a beleza dos gêiseres, tive tempo de conversar com Getúlio enquanto devorávamos sanduíches no almoço. Eu meio que pedindo desculpas pelo espanhol. “Esse povo é assim, acha que ainda manda por aqui”, disse ele. "Pensam que somos sua colônia. Não somos mais!".
Pois não é que no dia seguinte fomos todos chamados à chefatura dos “carabinieri” para dar declarações. O espanhol havia feito uma denúncia crime contra Getúlio, dizendo que ele havia colocado em risco a nossa vida. Claro que todos defendemos Getúlio, pois ele não só tinha cuidado muito bem da situação como sabia andar naquelas estradas de olhos fechados. Nunca houve risco para nossa vida. Foi o maior mico do espanhol! Mas, mostrou bem a sua cara...